Considerado “permissivo” ao desmatamento, o decreto que regulamenta o Cadastro Ambiental Rural no Pantanal de Mato Grosso do Sul foi assinado pelo então governador Reinaldo Azambuja (PSDB) e publicado em uma sexta-feira véspera da tradicional “semana do saco cheio”, em outubro de 2015. O regramento permite a remoção de 50% dos ambientes florestais e 60% de todo o resto das propriedades rurais pantaneiras em MS.
Como revelado por O Jacaré, técnicos do Ministério do Meio Ambiente criticam esta regulamentação por facilitar o desmatamento e concluem a necessidade de o Governo Federal intervir para promover a regulamentação da “exploração ecologicamente sustentável” do bioma. Quase oito anos depois, nota técnica aponta que, desde o decreto de 2015, as licenças emitidas pelo Imasul (Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul) autorizaram o desmatamento de 400 mil hectares no Pantanal.
“As licenças emitidas pelo Governo do Estado não são disponibilizadas no portal do IMASUL. Entretanto, pode-se afirmar que foram mais de 400 mil hectares licenciados no Pantanal do Mato Grosso do Sul desde 2016 baseados no Decreto 14.273/2015, que não tem base ou sustentação legal e científica”, informa a nota técnica elaborada pelo Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, órgão do Ministério do Meio Ambiente.
O Instituto SOS Pantanal e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa) alertaram o ministério de que o decreto de Reinaldo é ilegal, pois contraria o artigo 10 do Código Florestal. A lei federal estipula que o Estado, ao regulamentar a exploração do Pantanal, deveria “considerar as recomendações técnicas dos órgãos oficiais de pesquisa”.
No entanto, a regulamentação em MS foi baseada em um estudo contratado pela Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul) e elaborado por professores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo para permitir 60% de desmatamento. A Esalq, porém, afirma que o estudo não é de sua responsabilidade e não representa o posicionamento da instituição.
Em contrapartida, a Embrapa, renomada instituição de pesquisa e inovação vinculada ao Ministério da Agricultura, à época, recomendava a supressão vegetal de até 45% das propriedades. Reinaldo Azambuja optou por seguir a recomendação do estudo contratado pela Famasul, “entidade privada e com interesse representativo de classe”, como classifica o Ministério Público Estadual.
O SOS Pantanal afirma que dados do MapBiomas, que compila números de desmatamento no Pantanal comparados por estado, mostram que o desflorestamento em Mato Grosso do Sul é “muito maior, desproporcionalmente maior”, que o vizinho Mato Grosso.
O instituto diz que este cenário foi desenhado já na publicação do Decreto Estadual n. 14.273/15, que ocorreu em 9 de outubro de 2015, uma sexta-feira, antes do feriadão, que deu início à tradicional “semana do saco cheio”. Desta forma, não houve discussão nem repercussão, porque todos estavam voltados para os dias de descanso que vinham pela frente.
Entidades ambientais, porém, já alertavam para os riscos que o decreto trazia. A Ong Ecoa – Ecologia e Ação, dias depois da publicação da regulamentação do Cadastro Ambiental Rural, afirmou que as regras apresentam “sérios problemas que podem levar a um impacto enorme ao Pantanal”.
“O decreto do Governo do Estado afronta o Código Florestal e aparentemente só levou em conta o aspecto econômico ou a intenção de se intensificar o uso do Pantanal”, definiu a Ecoa, em novembro de 2015.
Enquanto isso, o estado vizinho Mato Grosso avançou, no ano passado, para regulamentação mais protetiva do bioma. Chamada de “Lei do Pantanal”, o governo mato-grossense sancionou, em agosto, a proibição de plantio em larga escala de culturas, como soja e cana-de-açúcar, o uso de agrotóxicos, as instalações de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), além de pecuária intensiva. Sendo permitidas a pecuária extensiva, o turismo rural e o ecoturismo.
A legislação altera a primeira lei do país a proteger o bioma, criada em 2008. A alteração foi proposta pela Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Minerais da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT).
“Mato Grosso está bem mais adiantado e com os processos corretos de preservação do Pantanal”, avalia o SOS Pantanal.
A reportagem tentou contato com o ex-governador Reinaldo Azambuja, atualmente presidente regional do PSDB, mas não obteve retorno.
Inquérito civil
A nota técnica do Ministério do Meio Ambiente é utilizada pelos promotores Luiz Antônio Freitas de Almeida e Luciano Furtado Loubet, da 34ª Promotoria de Justiça de Campo Grande, na abertura de inquérito para investigar denúncia de possível omissão do Imasul (Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul), em virtude da ausência do licenciamento ambiental, no desmatamento do Pantanal.
Em apuração preliminar, os promotores concluíram que “os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul editaram normas próprias, especialmente para a exploração de atividades econômicas no bioma. Tais normas, contudo, criam regimes jurídicos diferentes para uma mesma realidade ambiental e apresentam padrões protetivos muitos inferiores aos necessários à adequada preservação do Pantanal”.
Entre as normas de MS, está o Decreto Estadual n° 14.273, de 08 de outubro de 2015, que permite a supressão de 60% de vegetação nativa de campo e 50% de vegetação nativa florestal. A Embrapa, por sua vez, entende que a maior exploração sustentável nessa área seria de supressão de 45% da vegetação nativa.
Os promotores revelaram que a Famasul (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul), “entidade privada e com interesse representativo de classe”, contratou estudo de professores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo para embasar o nível permitido de desmatamento. No entanto, a Esalq afirma que o estudo não é de sua responsabilidade e não representa o posicionamento da instituição.
Recente estudo da Embrapa recomenda que a formação de pastagens cultivadas se realize em uma faixa entre 30 e 40% da área da propriedade “visando manter a heterogeneidade das paisagens, sua conectividade e a biodiversidade”.
Os promotores argumentam que o Decreto Estadual n. 14.273/15 contrariou a única recomendação técnica de órgão oficial de pesquisa, a Embrapa, “apoiando-se única e exclusivamente em um estudo contratado por uma entidade privada, representativa de um dos setores econômicos interessados, e elaborado por professores que não representam o entendimento oficial da ESALQ”.
O Ministério Público Estadual destaca ainda que, no Estado, apenas 64% das áreas com constatação de desmatamento potencialmente ilegal foram vistoriadas para fiscalização. E resolução da Semade dispensa o licenciamento para atividades agropecuárias, inclusive atividades de monocultura, e viola a legislação federal.
Recomendação
Além da abertura de inquérito civil, o MPE recomendou ao Governo do Estado e ao Imasul que “se abstenham de emitir quaisquer autorizações de supressão vegetal na área do Pantanal até que haja pronunciamento oficial de órgão de pesquisa, nos termos do art. 10 da Lei Federal n. 12.651/12, e a elaboração de uma Avaliação Ambiental Integrada para avaliar os impactos sinérgicos das atividades de supressão vegetal”.
“Que procedam ao embargo de todas as áreas de monocultura existentes no Pantanal que não possuam licença ambiental e, nas áreas superiores a mil hectares, que não possuam licença ambiental válida precedida de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)”, prossegue.
“Que não licenciem mais atividades de monocultura antes da realização de uma Avaliação Ambiental Integrada para avaliação dos impactos sinérgicos da monocultura no Pantanal e que, após sua realização, passem a exigir licenciamento ambiental de todas as áreas de plantio de monocultura no Pantanal, nos termos da Resolução CONAMA n. 237/97, o qual deverá exigir Estudo Prévio de Impacto Ambiental caso a área de plantio seja superior a mil hectares, conforme Resolução CONAMA n. 1/86”, encerra.
A recomendação não possui caráter vinculante ou obrigatório, mas poderá embasar processo criminal, ação civil pública ou responsabilização pelos prejuízos ambientais.
Depois de notificado, o Governo do Estado deve informar o Ministério Público Estadual, dentro de 20 dias, se pretende ou não atender a recomendação e firmar um termo de ajustamento de conduta com o MPE.